sábado, 13 de setembro de 2008

A Desobediencia Civil Eletrônica



Entrevista com Ricardo Dominguez, um dos
fundadores do Movimento Zapatista no ciberespaço

Juliano Spyer

Quando encontrei Ricardo Dominguez, numa tarde ensolarada de sábado em Nova York, estava determinado a fazer uma entrevista curta, de no máximo 15 minutos, para escrever uma crônica de duas páginas sobre personagens novayorkinos.

Ricardo parece um personagem de revista em quadrinhos. Veste roupas escuras - mesmo em tardes de sábado ensolaradas -, usa um óculos meio quadrado e de aro grosso que tem um ar antipático de algumas professoras primárias que eu tive. É 'xicano', filho de mexicanos nascido nos EUA, mas não tem características particularmente indígenas. O cabelo dele, escuríssimo, é engomado no estilo anos 50 e sua franja é moldada num discreto espiral do lado direito da testa. É difícil, pela aparência, acreditar que ele seja um dos militantes mais ativos do movimento internacional de apoio aos zapatistas de Chiapas, no México. Apesar dessa look estranho, Ricardo é muito cordial e bem humorado. Tem uma voz funda que - denunciando sua formação de ator - ele explora dramaticamente enquanto conversa. Antes de começar a gravar, expliquei a ele que eu - e provavelmente a maioria dos possíveis leitores da entrevista - sabíamos o que adultos de classe média com formação universitária no final do século 20 sabem sobre internet e computadores. Ele entendeu a proposta e narrou sua história desde o princípio, de uma forma quase elementar, permitindo pacientemente que eu o interrompesse quando tivesse dúvidas. Isso possibilitou que assuntos tão diferentes como Movimento Zapatista, Pós-modernidade, desobediência civil e ciberespaço se entrelaçassem e juntos se explicassem. No começo, eu queria contar uma história curiosa. Mas duas horas depois, quando a entrevista terminou, percebi que o conteúdo gravado pode ajudar pessoas que, como eu, ainda não encontraram um conceito e uma prática para exteriorizar o desgosto pela miséria e a violência do mundo hoje. Dedico essa entrevista à minha amiga Andrea Paula dos Santos, militante do Movimento dos Trabalhadores Sem-Terra, que por alguns motivos óbvios e outros não tão óbvios, esteve na minha cabeça durante todo o processo de gravação e edição deste texto.


(JS) -------- JS - Como você passou de ator a militante zapatista e agora a ídolo hacker? RD - Essa é uma longa história, de mais de 15 anos, de quando eu comecei a pensar numa teoria e numa prática para a 'Desobediência civil eletrônica'. Enquanto idéia, a 'Desobediência civil' surgiu aqui nos Estados Unidos no século passado, com Henry David Thoreau, que escreveu o ensaio 'Sobre a desobediência civil'. Ativistas como Martin Luther King e Gandhi foram dois grandes popularizadores dessa proposta.

JS - E o que Thoreau propõe no ensaio? RD - Propõe uma atitude crítica contundente mas ao mesmo tempo pacífica, muito aplicada inclusive pelos movimentos estudantis de 1968. Em síntese, a desobediência civil significa que você se dispõe, de uma forma não-violenta, a perturbar a ordem. Por exemplo, durante o Movimento pelos Direitos Civis dos negros americanos nos anos 50 e 60, desobediência civil era entrar num restaurante e se sentar. Isso era tudo que um negro precisava fazer para tocar nos nervos da sociedade...

JS - E como surgiu a vontade de transpor essa idéia para o mundo virtual? Em 87, eu e quatro outras pessoas formamos um grupo chamado Critical Art Ensemble (CAE). Éramos artistas e profissionais que tínhamos em comum um profundo desgosto por nossas profissões. Por causa desse ódio a quem nós éramos e o que estávamos fazendo, começamos a debater formas de alterar esse quadro através de desobediência civil eletrônica. Isso não seria possível se estivéssemos satisfeitos. Dentro da nossa sociedade, somos treinados a agir e pensar de uma certa forma e isso nos impede de inventar coisas novas. Porque estávamos angustiados, estávamos também dispostos a fazer concessões que a sociedade discrimina. Aquele era o momento para artistas abrirem mão desses hábitos, especialmente nos anos 80 quando emergiu o pensamento crítico pós-moderno... Nessa época, começávamos também a contemplar a idéia de um ciberespaço, de um universo desmaterializado que dava possibilidades infinitas de comunicação. O acesso a computadores ainda era limitadíssimo, mas o gênero ciber-punk já falava sobre essa nova realidade virtual. Autores como William Gibson, Bruce Sterling, e vários britânicos escreviam sobre isso e nós liamos tudo deles. Gibson, aliás, foi o cara que no romance "Neuromancer" criou o termo 'ciberespaço' que, para ele, era uma "mass of alucination agreed upon" ou uma alucinação coletiva e consensual...

JS - Qual era o projeto do CAE? RD - Para nós, o ciberespaço era uma utopia a ser conquistada. Sentíamos que a cultura do Ocidente estava em ruínas e talvez, se ocupássemos antes esse novo espaço, poderíamos ajudar a construir uma nova comunidade, não apenas local mas global. A sociedade hoje acredita e defende que produtos têm mais direitos que seres humanos. Isso está errado, e começamos a estudar como aplicar a desobediência civil dentro deste mundo para interferir no quadro do mundo real. No século 19 e em boa parte do século 20, o poder existia nas ruas, tudo se resumia a fazer ruas maiores para transportar mais produtos. O movimento de desobediência civil, nessa época, pregava exatamente o bloqueamento dessas ruas. Gandhi levava milhares de indianos para o centro das cidades para que todos se sentassem e com isso, interrompessem essa ordem. Queríamos fazer a mesma coisa mas no ciberespaço.

JS - E o que no ciberespaço atraía tanto a atenção de vocês? RD - Justamente a absoluta liberdade de expressão desse novo ambiente. E também a possibilidade de criar um foro público de debates que pudesse fazer frente aos veículos de informação tradicionais, que filtram as idéias de acordo com interesses próprios. Esse elemento é central para nós porque até então, para fazer frente ao New York Times, uma pessoa precisava ter muito dinheiro ou poder político para montar uma estrutura semelhante à desse jornal, com centenas de repórteres ao redor do mundo. Sempre houve pessoas descontentes mas com a internet, essas pessoas puderam encontrar muitas outras que têm as mesmas idéias e por isso conseguem falar simbolicamente com um volume bem mais alto e sem filtros.

JS - Como o Movimento Zapatista entrou nessa história? RD - CDA tinha discutido muito sobre o conceito de desobediência civil eletrônica mas ainda faltava colocar tudo aquilo em prática. Foi quando, em 94, surgiu o Movimento Zapatista em Chiapas. Aparentemente era um grupo guerrilheiro tradicional, com formação maoísta-leninista muito parecida com a do Sendero Luminoso peruano e que saiu das florestas com fuzis nas mãos para impor suas idéias pela força ou morrer. O grupo, formado por 28 comunidades de origem maia, declarou autônoma a região de Chiapas e queria negociar direitos aos povos indígenas do país. Não existia muitas diferença entre os zapatistas e outros grupos guerrilheiros do passado recente ou presente e, provavelmente, o governo mexicano os teria massacrado cedo ou tarde se, em 12 dias de luta, eles não tivessem mudado da água ao vinho. Esse foi o tempo que os zapatistas precisaram para descobrir os mecanismos da 'fábrica virtual' e reorganizar toda sua estratégia de luta. Assim que eles descobriram a internet, o jogo ser inverteu e eles ganharam um novo poder para combater o exército mexicano. E isso quem afirma não sou eu mas a Rand Corporation, um dos principais centros de pesquisa militar dos EUA. Os zapatistas, em menos de duas semanas, se tornaram os maiores e mais fortes guerreiros da informação que já existiu na terra.

JS - E porque eles e não qualquer outro grupo armado? RS - Por dois motivos, principalmente. Porque em 94 já existia concretamente o ciberespaço. Dentro das universidades e dos institutos, estudantes e professores já tinham e-mail para trocar idéias, inclusive usando as chamadas listas de discussão. Você assinava a lista sobre o assunto e passava a receber e a mandar mensagens para todos os outros assinantes ao mesmo tempo. Mas havia também um componente cultural dos zapatistas. Eles tinham sonhado com isso antes. Eram capazes de conceber uma rede intergalática, intercontinental, de luta e resistência, ou como eles dizem, "as nossas forças eletrônicas"... Ou seja, em apenas 12 dias eles perceberam que não precisavam mais lutar a velha guerra moderna, de morrer e matar. Eles perceberam que existia uma outra maneira mais eficiente que é a guerra de informação, que quer dizer simplesmente uma guerra de palavras...

JS - Como essas comunidades, sem ter nem luz elétrica, conseguiram chegar até os computadores e de lá para as redes? RD - Chegavam e chegam ainda, primeiro a pé pela floresta, até encontrar alguém que tenha um cavalo, de lá até a estrada, depois de carro até a cidade. E mesmo sem luz elétrica, se tornaram a mais poderosa comunidade da guerra de informação do planeta. Em 99, a Wired, a principal revista do mundo digital nos EUA, publicou uma lista com o nome das 25 pessoas ou organizações mais influentes on-line. A primeira era Bill Gates e a segunda, um bando de índios maia do sul do México. Comparando as posses de um e de outro, fica claro como os zapatistas entenderam bem o funcionamento do ciberespaço... Hoje, fala-se muito de 'adaptabilidade', que as companhias devem se adaptar rápido ao novo mercado. Essa, para quem não sabe, é uma contribuição dos zapatistas à economia digital...

JS - Qual era o conteúdo dessas mensagens que eles começaram a passar? RD - Bom, são cartas de todo tipo, milhares e milhares que eles mandam todos os dias. E não são notinhas mas cartas longas, que formam livros. Muitas são histórias para crianças. Os assuntos mais recorrentes são o mar, a lua, a tecnologia maia, o efeito dos sonhos. Tem tanto livro que eles brincam dizendo que se os empilhassem, daria para chegar à lua...

JS - É a primeira vez que eu estou ouvindo que os zapatistas escrevem livros e ainda mais nesse ritmo alucinante. Por que isso não chega aos jornais? RD - Porque as mensagens não são mandadas para os jornais. Elas circulam entre comunidades autônomas ao redor do mundo, na Itália, na Coréia do Sul, na Austrália, na Áustria. São os zapatistas virtuais que recebem essa literatura e passam a diante. Não precisamos do New York Times para traduzir e publicar nossos textos. Tudo existe dentro da rede. Eles, os zapatistas de Chiapas, são revolucionários pós-modernos, os primeiros revolucionários virtuais. Sem ter conectividade, nem laptops, nem celulares, eles me ensinaram em 1994 o que era desobediência civil eletrônica. Eles foram capazes de criar e abastecer uma rede de informação que contava com infinitas mensagens de e-mail e centenas de sites.

JS - E quanto tempo levou entre o surgimento dos zapatistas e a criação do Eletronic Disturbance Theater (EDT)? RD - Eu entendi a mensagem deles quase instantaneamente. Já fazia parte do Critical Art Ensemble e assim que soube dos zapatistas, comecei a participar de protestos nas ruas de Nova York em favor dessa causa, fazer greve de fome na frente da Embaixada do México. Um desses atos foi uma performance virtual chamada de 'Rabinal Achi/Zapatista_Port_Action at MIT'. Durante 4 meses, em 96, eu fiz 3 horas semanais de entrevistas com zapatistas ao redor do mundo. O sinal de voz era retransmitido ao vivo para o site do MIT, o Massachusetts Institute of Technology, que disponibilizava o material ao público. Também em 96, um analista financeiro do Chase Manhattan soltou um memorando interno dizendo que apesar dos zapatistas não oferecerem nenhum perigo à economia mexicana ou a Wall Street, o movimento estava provocando uma depressão no mercado e por isso ele recomendava a sua erradicação imediata. É isso mesmo, o Chase estava ordenando: Ataque! Esse documento vazou e um dia depois deu o ter recebido, o presidente Zedillo do México autorizou o primeiro ataque massivo aos rebelados de Chiapas. Mas nós, os zapatistas virtuais, respondemos imediatamente mandando o memorando para o New York Times, para toda a imprensa. Fizemos atos públicos e distribuímos muitas cópias do documento borrado de tinta vermelha. Resultado: em três dias o exército mexicano suspendeu a ofensiva e recuou. Por causa dessas e de outras atividades, muitas pessoas entraram para as nossas listas de discussão. Foi dessa rede que nasceu o EDT.

JS - Por que o nome 'teatro'? Porque é no teatro que você cria um drama; a causa dos zapatistas é um drama social. Eu acredito no teatro que é invisível e que propõe uma situação, leva a questão para a comunidade, e deixa as pessoas da comunidade se tornam os personagens. Tudo que você faz é oferecer para eles o palco e a internet é justamente um palco para o diálogo público. Os nossos atos não são para agradar. Estamos descontentes e demonstramos isso. De repente, outros ativistas nos atacam dizendo que isso que fizemos é péssimo. Os hackers dizem o mesmo. O New York Times diz o mesmo. O Pentágono diz o mesmo. Mas porque é péssimo, surge o diálogo entre as pessoas, a troca de informações para saber se o que a gente faz é legal ou ilegal. O resultado, apesar de muitas vezes doloroso, é sempre positivo.

JS - Vocês já se conheciam antes? RD - Nós não nos conhecíamos e até hoje, quase cinco anos depois da criação do EDT, eu ainda não conheço pessoalmente um dos membros, o Brettt Stalbaum, que mora em San Jose, na Califórnia. Conheci o Stefan Wray de cara porque ele estava fazendo o curso de doutoramento na Universidade de Nova York sobre a desobediência civil eletrônica. Mas a criação do grupo veio mais tarde, em decorrência de um ataque pára-militar a uma aldeia maia em Chiapas. Esses assassinos, treinados e armados pelo governo mexicano, mataram a sangue frio 45 mulheres e crianças em 22 de dezembro de 97. Os policiais que estavam a um quarteirão do local declararam que não ouviram nada, nenhum tiro de fuzil, nenhum grito de gente sendo esquartejada. Logo depois do Massacre de Acteal - Acteal era o nome da vila - recebi um e-mail de uma net-artista de Boston chamada Carmin Karasic. Carmin trabalhava no MIT e tinha lido meus artigos e acompanhado a performance que eu fiz no site do MIT. Ela queria os nomes dos indígenas assassinados para fazer um monumento virtual de protesto. Estávamos todos revoltados e todos da lista trocávamos muitas mensagens discutindo formas de responder àquele ato imbecil. Recebi também uma mensagem do Anonymous Digital Coalition, que é um grupo italiano, propondo que todos nós fôssemos ao site do presidente mexicano, que era o sr. Ernesto Zedillo, num mesmo período, e ficássemos refrescando nossos browsers para sobrecarregar o sistema e tirá-lo do ar. Nisso, o Brett , que trabalha para o Cadre Laboratory of New Media (http://switch.sjsu.edu), escreveu dizendo que ele criaria um aplicativo para fazer os nossos navegadores ficarem recarregando sem parar a página do sr. Zedillo. Juntamos essas idéias e colocamos em prática o protesto em 10 de agosto de 98...

JS - Acho que não entendi. Como é que funcionava esse protesto? RD - É simples. A Carmin construiu o monumento às vítimas do Massacre de Acteal, contando quem eram as pessoas que tinham morrido e porque elas foram mortas . No servidor em que o site-monumento estava hospedado, colocamos o aplicativo do Brett. Esse aplicativo contava o número de pessoas que visitavam o site. Para cada pessoa que visitasse o monumento, o aplicativo mandava um sinal eletrônico ao site da presidência mexicana. É como se essas pessoas estivessem acessando o site do presidente. O sinal bate na porta do endereço virtual do sr. Zedillo e pede um documento. Um segundo depois, bate de novo e pede o mesmo documento. Imagina o que acontece quando 28 mil pessoas fazem isso ao mesmo tempo durante 4 horas. O sistema cai, e foi o que ocorreu. Veja bem que este é o exemplo típico de desobediência civil eletrônica. O ato foi pacífico, não destruiu banco de dados, e as pessoas que organizaram o movimento não eram anônimos. Apenas, como fez Gandhi, nos sentados na porta do site... Mais uma vez os zapatistas mostraram o poder de sua rede, que é um poder totalmente descentralizado. Não tem ninguém dando ordens. O comandante Ramona não fala para a gente: façam isso, não façam aquilo. Por isso é pós-moderno, porque não tem centro nem periferia. É o campo perfeito para a guerra de informação.

JS - E o que aconteceu depois desse protesto? RD - Durante 4 horas, quem tentasse acessar o site do sr. Zedillo recebia a seguinte mensagem: "Nesse momento não podemos abrir esta página. Por favor, volte mais tarde". Isso naturalmente chamou a atenção da imprensa e no dia seguinte estávamos de novo no New York Times. Nessa altura o grupo do Eletronical Disturbance Theater estava formado. Éramos Carmin, Brettt, Stefan Wray e eu. Agora que tínhamos descoberto o meio de pôr em prática a desobediência civil pela internet, planejamos mais performances ao longo do ano. Os nossos objetivos eram criar os protocolos para a desobediência civil eletrônica na prática e não mais na teoria, informar à sociedade sobre esse assunto, ajudar outros grupos a realizar protestos virtuais, e desenvolver o diálogo entre hackers, 'hacktivistas' e net-artistas.

JS - Além do compromisso de promover apenas atos pacifistas, quais são os outros elementos da ética do EDT? RD - Começa com a questão da transparência. Sempre informamos quem somos, onde estamos, onde e porque vamos agir, quanto tempo vamos ficar lá. O Sr. Pentágono, se precisar, tem os nossos números de telefone e e-mail ao alcance da mão.

JS - E qual a resposta do público aos atos do EDT? RD - A pior possível, graças a Deus! Ainda em 98 fizemos mais dois protestos virtuais, trabalhamos duríssimo para organizar os eventos, e fomos também muito atacados, por todos os lados, pelo que eu chamo de comunidade 'digitalmente' correta. Isso porque a coisa mais importante da internet é a velocidade de acesso e o nosso trabalho consiste exatamente no oposto, ou seja, em travar a rede. Para os digitalmente corretos, a velocidade de conexão é tudo. E a nossa mensagem é: atenção, todo mundo para o meio da rua! Muitos pensaram que a gente estava fazendo alguma coisa ilegal. Mas de novo, nós fazíamos performances pacíficas e sempre de forma transparente. Mas mesmo os hackers, no princípio, ficaram contra nós porque para eles, vale tudo, menos congestionar a rede.

JS - Vocês fizeram mais dois atos em 98. Como foram esses atos? Foram semelhantes ao primeiro. Cada um deles homenageou um momento importante da trajetória do Movimento Zapatista. A última performance aconteceu na cidade de Linz, na Áustria, no Ars Electronica Festival (http://web.aec.at/infowar/index.html) que foi criado em 1975 e é o mais antigo do gênero. O tema de 98 era justamente guerra de informação e o EDT foi convidado. Decidimos fazer um protesto paralisando três sites, o do Sr. Zedillo, que era de praxe, o do Pentágono, pelo envio 25 helicópteros Hueys para o governo do México supostamente combater o narcotráfico e que foram direto para Chiapas, e da Bolsa de Frankfurt, porque lá eram negociadas ações de empresas que estavam interessadas em comprar minas de urânio em Chiapas. (Aliás, é essa a função do NAFTA, permitir que essas empresas entrem em território indígena.) No dia da performance, estávamos todos no hotel e às 7:30 da manhã eu recebi um telefonema no meu quarto. A pessoa perguntou se eu era Ricardo Dominguez, eu disse que sim, então ele falou em espanhol claro: "Mira, Ricardo, sabemos quien eres, sabemos que vas hacer. No lo hagas, porque esto no es un juego".

JS - Foi um bom-dia, digamos, encorajador... RD - E era só o começo. Logo que eu desci do quarto para o saguão do hotel, um grupo de hackers que estava no festival me cercou e me deram o mesmo recado do governo mexicano: desista do ato ou nós vamos te tirar do ar. Eles também eram contra prejudicar a velocidade de conexão... Além disso, porque anunciamos que tiraríamos do ar ao mesmo tempo o site do Pentágono, da Bolsa de Frankfurt e do presidente do México, o hotel estava lotado de jornalistas que queriam cobrir a performance. Nesse clima de tensão e expectativa, começamos o ato. Duas horas depois, percebemos que algo estava errado. Os computadores das pessoas que estavam participando do ato começaram a travar e, como eu disse, o nosso aplicativo nunca travou o sistema de ninguém. Para nós, os hackers estavam nos atacando. Mas como explicar isso para milhares de pessoas e mais jornalistas. Até os organizadores do festival estavam nas nossas orelhas reclamando e dizendo que sabiam que não ia dar certo, que éramos irresponsáveis. Um desastre! Bom, uma hora e meia depois, o ato já tinha terminado, recebemos um telefonema da revista Wired.com. Eles diziam que tinham confirmado que o ataque à nossa performance tinha saído do Pentágono. Do Pen-tá-go-no! E de fato, quando examinamos o código da página deles, achamos o aplicativo que estava causando a travação em todos os computadores. Esse foi o primeiro caso registrado que Forças Armadas dos EUA usaram armas de guerra de informação contra um servidor civil. O que, por sinal, é contra a lei.

JS - E vocês tomaram alguma providência? Eles passaram vergonha porque no dia seguinte estávamos todos na capa do New York Times. Levamos o caso para o Departamento de Direito Eletrônico de Harvard mas so não foi a diante. JS - Esse foi o último ato do ano? RD - Não, foi a última performance. Terminamos aquele ano celebrando o quinto aniversário do surgimento do Movimento Zapatista lançando, um minutos depois da meia-noite, o kit com o aplicativo e o manual para a execução de distúrbios eletrônicos. Muita gente estava nos procurando, querendo saber como fazer protestos virtuais, e para comemorar a data e o ano novo, mandamos o kit para todos em nossas listas. Vinte minutos depois, o grupo Queer Nation (Nação gay), da Califórnia, congestionou o site www.godhatesfags.com (Deus odeia os viados), do Canadá. Logo depois, o International Animal Liberation, de defesa dos direitos dos animais, fez um ato contra uma empresa de medicamentos da Suécia, que desligou todo seu sistema por medo do que poderia acontecer. Ativistas anti-armas também paralisaram o sistema de comerciantes de armas pela internet. Esse foi o nascimento do 'hacktivismo' ou do ativismo no ciberespaço.

JS - Outra momento importante para os hacktivistas foi a vitória contra a www.Etoys.com, não foi? RD - Sem dúvida! Foi o ponto máximo, eu diria. Ninguém da comunidade digital esperava um ato de selvageria tão explícito como aquele. JS - Você pode contar o que aconteceu? RD - A Etoys.com, gigante da internet e revendedora de brinquedos, atacou através da corte dos Estados Unidos um pequeno site de artistas suíços chamado Etoy.com (sem S). Detalhe: Etoy existia desde 94 e era famoso entre os net-artistas. Em 99, Etoys usou seu dinheiro e o sistema judiciário americano para roubar o domínio 'Etoy' dos artistas suíços. A mensagem dos EUA para a comunidade internacional era que a partir daquele momento, as leis americanas regulamentavam a internet. Acontece que a comunidade da internet não concorda com essa postura, inclusive porque a idéia de internet pressupõe que ela seja um espaço sem fronteiras. O que a Etoys.com não contava é que nós tínhamos uma longa experiência em desobediência civil eletrônica. Fizemos um protesto de 12 dias congestionando o site da Etoys bem no fim de ano, quando as pessoas compram mais brinquedos, e cada dia o preço das ações deles caia mais. Em janeiro, a situação deles estava tão preta, com as ações totalmente desvalorizadas, com a imprensa do nosso lado, que eles capitularam. Levantaram a bandeira branca! Não só devolveram o domínio do nome Etoy para os suíços como pagaram todos os custos do processo e ainda pediram desculpas publicamente. Este é o conceito de desobediência civil eletrônica funcionando! Porque a pequena Etoy não tinha como lutar contra o adversário americano, mas a rede levantou tanto a voz e a causa dos suíços que eles ganharam um poder de fogo fantástico! Somos como um enxame de abelhas atacando um gigante... Inclusive uma das coisas que as empresas de e-commerce se esquecem no delírio de consumo delas, é que existe uma outra rede, uma outra sociedade que não funciona dessa forma, e que essa sociedade é extremamente inteligente, e que agora tem poder por causa da internet.

JS - E qual é o legado que vocês deixam para a rede? RD - Acho que vários. Para começar, uma coisa que está me entusiasmando muito é a politização dos hackers. Há duas semanas, o grupo hacker 2600, que é um dos maiores do mundo, nos convidou para falar em sua convenção anual, que foi aqui em Nova York. Dois dos painéis mais importantes do evento eram: hacktivismo e desobediência civil eletrônica. Esses caras são duros de convencer. Mas demonstraram que estão conscientes e que vêem com muita seriedade o que fazemos. Além disso, existem outros grupos surgindo pelo mundo espelhados na nossa prática, como os ElectroHippies na Grã-Brettanha, o Federation of Random Action na França. Recentemente um novo grupo foi criado na Austrália chamado S-11. Para protestar contra uma reunião da OMC (Organização Mundial do Comércio), marcada para setembro desse ano num cassino de Melborne, eles 'sequestraram' o domínio da Nike. Com isso, todas as pessoas que iam a www.nike.com num dia determinado, entravam num site sobre a condição dos trabalhadores das fábricas da Nike no Sudeste Asiático... A prática é a mesma do EDT: ninguém saiu ferido e o patrimônio do site não foi violado. É assim que eu analiso esse ato e eu o considero muito inventivo...

JS - O EDT também foi convidado para se ir falar no Pentágono. Como foi a experiência? RD - Ao Pentágono e às Agência Nacional de Segurança (Nacional Security Agency) dos EUA também, não se esqueça... A experiência foi divertidíssima! Fizemos uma performance de uma hora e meia com DJs e apresentando vídeos para contar a história dos zapatistas sobre a tecnologia maia. Falamos quem somos, porque fazemos o que fazemos e, em resumo, o que ouvimos deles, de mais de 400 generais e congressistas americanos, é que temos um "pacto com o demo" e que ainda vamos provocar "a invasão virtual de Pearl Harbor"! Ao que eu respondi da seguinte forma: "Veja, senhores, se isso fosse verdade, eu não estaria aqui falando com vocês e sim na cadeia. Foram os senhores que quebraram as leis e não nós"... Eles tem as paranóias deles. Mas o curioso é que por causa disso eu estabeleci um diálogo com grupos dessas organizações, o que para mim é fantástico! Quem não quer ter contatos no Pentágono?

JS - Além dos zapatistas, quais outros movimentos estão em contato com o EDT para organizar suas guerras de informação? RD - Bom, temos contato com as comunidades do Timor Leste, com o movimento estudantil da Indonésia (que derrubou o presidente Suharto do ano passado), com o movimento pró-democracia na China, com as comunidades tibetanas, com as comunidades indígenas do Peru e Colômbia que vêm sendo atacados por multinacionais do petróleo, com o povo de Okinawa que está mobilizado contra a reunião do G-8, com os aborígenes australianos que lutam contra a construção de usinas atômicas nas terras deles, entre outros.

JS - Você sabe se o movimento dos Sem-Terra no Brasil está usando esses recursos? RD - Eu acho que ainda não. Pelo menos eles nunca entraram em contato comigo, enquanto os grupos que eu mencionei fazem parte da nossa comunidade. A proposta do EDT é oferecer ferramentas e tentar chegar à comunidade que fala português para que os Sem-Terra e outros grupos brasileiros passem a usá-las e assim aumentar ainda mais o volume da voz deles. JS - E onde eles podem conseguir essas ferramentas? RD - Eles podem entrar em contato comigo. Meu e-mail é rdom@thing.net. Estamos tentando colocar essas ferramentas num site mas os governos não concordam porque consideram o nosso kit armas de terrorismo. Estamos trabalhando para, nos próximos meses, colocar tudo na Freenet. É um novo sistema que está sendo desenvolvido que vai ser virtual, ou seja, não vai estar hospedado em nenhum servidor. Uma vez que você carrega um arquivo, não é possível tirar de circulação. Dessa forma as pessoas poderão encontrar essas ferramentas mais facilmente.

JS - O que você no futuro próximo para os hacktivistas? RD - Acho que a idéia está frutificando. Especialmente agora que a comunidade hacker está encarando esse diálogo, que na minha opinião vai florescer, ficar mais forte. A chamada 'democracia html' deve popularizar mais o hacktivismo, tornando o conceito e as ferramentas mais próximas do grande público, de modo que protestos virtuais devem se tornar tão comuns como mandar um e-mail ou visitar um site. Uma pessoa não tem mais que ter conhecimentos especiais ou saber da infraestrutura da rede para participar do diálogo. Esse era o nosso objetivo e eu acho que está caminhando para o rumo certo.

URL da homepage de Ricardo Dominguez: www.thing.net/~dom

URL do Eletronic Disturbance Theater: www.thing.net/~rdom/ecd/ecd.html

Um comentário:

Fabio Cosman disse...

Caros

Sou pesquisador e gostaria de saber onde esta reportagem foi originalmente veiculada, se existe um tradutor e coisas afins.
Sensacional, resume muito bem o hacktivismo.